sábado, 24 de maio de 2008

Legítima defesa

Recebi uma carta do diabo.
O danado se fez passar pelo meu marido. Dizia que tinha encontrado outra mulher e ia sair de casa. Contou que achara o calor que faltava em sua vida. Tinha até recuperado o tesão. Falou que me queria bem e que torcia para eu encontrar de novo a felicidade. Marcou hora para vir buscar as suas coisas, naquela noite mesmo. Resolvi fazer uma bela despedida. Abri uma garrafa de vinho. No segundo copo ele começou a olhar para o meu decote. Daí para chegar na cama foi um pulo. Faz tempo que o maldito não era tão tinhoso. Fizemos coisas que eu nem imaginava ser capaz. Depois, enquanto ele dormia, enfiei-lhe uma faca de cozinha entre as costelas. Achei que tinha me livrado do malvado para sempre. Agora estou aqui nesse inferno. Meu advogado jura que me tira, vai alegar legítima defesa.
(E.M. 05/2008)

domingo, 18 de maio de 2008

Mar de fotógrafos, à beira da represa.

Visita de Paulo Henriques Britto

E o autor se fez pessoa.

Do fundo da sala, reconheci a voz límpida de Gabriela pedindo para o autor ler mais um poema. Ela queria em sua mente gravar esse registro. Sensação curiosa, ler um texto e vislumbrar a voz do dono. Visualizar talvez não seja verbo adequado, “ouvidualizar” também soa estranho. Cada um de nós tem um modo personalíssimo de escandir as silabas e modular as frases, com ou sem chiado. Essa toada é registrada pelo cérebro, que acaba por atrelar o som ao escrito. Quantas vezes, ao ler uma apostila ou livro, não fomos perseguidos pela voz do professor que o escrevera,  contaminando nosso ato solitário de leitura? 

Paulo Henriques Britto é um carioca que não demonstra os 57 anos que carrega, talvez por viver  parte da existência numa esfera distante em que o tempo não corre e onde não existem problemas, só questões a serem propostas e desafiadas. Depois de falar de si e de sua obra com simpatia e desenvoltura, Britto pretendeu-se  pouco dotado para ler os próprios textos. Vencida a resistência inicial, começou como que timidamente com o primeiro poema de “Tarde”, sem dúvida uma espécie de confissão:

“No poema moderno, é sempre nítida

uma tensão entre a necessidade

de exprimir-se uma subjetividade

numa personalíssima voz lírica

 e, de outro lado, a consciência critica

de um sujeito que se inventa e evade,

ao mesmo tempo ressaltando o que há de

falso em si próprio – uma postura cínica,   

A platéia já estava conquistada, o pedido de bis foi atendido.  Por fim,  uma calorosa salva de palmas, como se dizia nos programas de auditório, coroou a leitura de “Paraísos Artificiais”, primeira crônica  do livro de mesmo nome. As crônicas são antigas, vêm dos anos 70 e foram sendo buriladas ao longo dos anos.

Paulo Henriques Britto deixou o Colégio Militar do Rio de Janeiro em 1968, auge do período repressivo. Foi parar na Califórnia, onde adquiriu uma segunda língua e se encantou com vanguardas e contestações, sem perder o agudo senso critico.

Começou estudando matemática, tentou cinema e acabou se consagrando como mestre das palavras, tradutor, poeta, contista e professor.

 A PUC da Gávea, no Rio, infelizmente para nós, consome cada vez mais seu tempo. Quem sabe de seu apostolado surjam novos talentos. Certo é que, para algumas traduções, só Britto está preparado, não só por seu enraizado conhecimento de inglês, mas pela paciência e persistência que o leva a passar anos trancado numa biblioteca para descobrir linguagens arcaicas que pudessem fazer justiça a um texto original.

Tem entre seus interlocutores habituais, por  correio eletrônico, figuras como John Updike e até mesmo o quase intangível Thomas Pynchon, que não se deixa fotografar e ninguém sabe onde encontrar.

Alguém perguntou a P.H. se não é desanimador traduzir para pessoas que sabem menos do que ele.  Provavelmente a grande maioria dos leitores anglófonos também entendem muito menos do que nosso tradutor. Diz a lenda bahiana que Ruy Barbosa foi para a Inglaterra ensinar inglês. Pode não ser verdade, mas Paulo Henriques Britto está preparado para esse feito.

Como pode um intelectual tão sofisticado, consagrado e premiado, ser ao mesmo tempo uma pessoa tão simples e acessível? Existem dois tipos de criadores, diz ele. Mozart nasceu feito e compunha admiravelmente aos dez anos de idade. Beethoven lutou muito no começo, mas à custa de esforço criou obras magníficas. Paulo Henriques se coloca nessa segunda posição, a dos que trilharam todo o caminho do aprendizado clássico, do respeito às regras de composição, dos padrões da matemática, para só então se dar ao luxo de romper alguns preceitos. Tornou-se, assim, um grande virtuoso, em qualquer das suas atividades.

Britto ama Proust e Machado, traduz Byron e adora Drummond, mas não  é incondicional de Olavo Bilac. Ironia do destino, compartilha com esse outro carioca, patrono do serviço militar,  o nome de seu último livro de poesias. Tarde  é obra recente, fruto do convívio com temas maduros e sofridos, como a morte e a doença dos mais velhos.

Figura surpreendente, esse Paulo Henriques Britto. Ao vivo, não se parece em nada com a foto da orelha do livro. Quem o vir na rua, imaginaria uma espécie de técnico de computação, um pouco alheio ao movimento da rua.

Na verdade, Paulo Henriques Britto está sempre computando,  a um só tempo completamente desapegado e totalmente conectado ao movimento do universo.

Nessa noite fria de quarta-feira  o grande autor, convidado do Marcelino, para nós ganhou voz e virou pessoa.

(Eduardo Muylaert, maio de 2008, 4500 caracteres com espaços)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

63


Alguém (não me perguntem quem, pois não me lembro) disse que a velhice é um momento de graça entre a vida e a morte. Acho que assim deve ser para quem teve o dom de amadurecer e chega aos sessenta anos sem problemas de saúde e livre da ansiedade que, durante a infância e a vida adulta, nos força a mil e um malabarismos para ganhar o amor dos outros.

Digo sessenta, porque é essa a idade a partir da qual a lei em S. Paulo nos permite furar as filas do correio, do cinema ou do banco, para gozar de atendimento prioritário. Mas sessenta é um número arbitrário. Há quem alcance sua liberdade antes disso, quem a conheça depois dos oitenta e quem nunca descubra a alegria de se sentir dono de si mesmo, livre das amarras artificiais que nos impedem de olhar de frente esta coisa indecifrável e breve que é a vida.

(Estado de S.Paulo, 12/05/2008, Eliana Cardoso, MULHER NO ESPELHO)

PROJETO MANANCIAIS NA GUARAPIRANGA









sexta-feira, 9 de maio de 2008

CARAHAVANA 16 + 1




CARAHAVANA 16 + 1 Resultado de uma excursão pela capital cubana conduzida por Iatã Cannabrava e Jorge Luis Álvares Pupo, a mostra traz imagens registradas por 16 fotógrafos profissionais e amadores, entre eles, Luis Alvares Pupo e Helena Wolfenson. A curadoria é de Paulo Klein. IQ Art Gallery - Restaurante Chakras - r. Dr. Melo Alves, 294, Cerqueira César, região oeste, tel. 3062-8813. Seg.: a partir das 19h. Ter. a sex.: 12h às 16h e a partir das 19h. Sáb. e dom.: 13h às 16h. Até 8/6. Valet (R$ 7 e R$ 13).f

Fotografando PARANAPIACABA






Fotografando SÃO PAULO









Fotografando HAVANA

David Bailey também não conseguiu fotografar Castro, nem o balé nacional, ou o circo. Havana, o magnífico registro de 2005, é para o veterano fotógrafo inglês apenas uma impressão rápida sobre um lugar único.
Como nós, quase dois milhões e meio de turistas visitaram Cuba em 2007, num momento especial da história. Fidel Castro tinha se afastado em julho de 2006, após delicada intervenção cirúrgica.
As notícias sobre o estado de saúde do Comandante eram contraditórias e preocupantes. Seu irmão Raul assegurava a interinidade. Os dois exíguos jornais e as quatro estações de televisão do governo não ajudavam a entender a situação. Havia ansiedade nas ruas.
O fim da era de Fidel só ocorreria um ano mais tarde, em fevereiro de 2008, com a renúncia à Presidência. Agora, a cada dia ou semana são anunciadas mudanças que poderão dar nova feição à ilha.
Nosso registro fotográfico mostra Havana e seus arredores em fevereiro de 2007, antes portanto do desencadear das transformações. Captamos o panorama do fim de um conturbado período de meio século, iniciado com a entrada triunfal de Fidel em Havana em janeiro de 1959.
Ninguém sabe ainda se as reformas são mesmo para valer, ou só uma plástica para dar um ar mais moderno ao sistema. De todo modo, nosso registro é do antes, do momento em que esperar parecia ser a única alternativa.
Percorremos parte dessa “ilha extensa, bonita e desditosa” de que falava Hemingway, já em 1935. Percebemos a mistura, familiar para nós, de sangue índio, europeu, africano e chinês. Visitamos o magnífico patrimônio colonial, poupado pela estagnação e pronto para restauro. Percebemos as dificuldades do dia a dia, as carências dos moradores, alguns anseios. Mas também sua hospitalidade e alegria.
Para penetrar nos mistérios, mais do que os jornais é preciso ler os escritores malditos, começando por Pedro Juan Gutiérrez. E ver os filmes, e olhar para o que os artistas têm podido produzir e mostrar.
Mais que o espanhol, a música é idioma oficial, e esse nós também sabemos.
Nossa impressão também é rápida, superficial, apressada. Assim é a fotografia, trabalha com frações de segundo para tentar eternizar um momento, às vezes toda uma história. Profundas são só as imagens que a luz e as sombras do lugar gravam para sempre em nossa lembrança (Eduardo Muylaert).