quarta-feira, 15 de junho de 2011

Minha noite com Joana.

Joana ficou de me buscar no Santos Dumont. Eu já tinha reservado uma mesa no Bife de Ouro, nada como uma entrada clássica no Rio de Janeiro, a pompa e a glória do Copacabana Palace. Senhores passageiros do voo JJ3095, dirijam-se ao portão de número 1, embarque imediato. Eu imaginava o dia de noiva de Joana, depilação, podóloga, manicure, maquiagem, creme no corpo todo. Nessa altura, ela já deve estar entrando naquele apertado vestido azul noite, com o decote sobre o qual aterrissa um provocante escaravelho de ouro com olhos de brilhantes. Nem ligo para o empurra-empurra do saguão, o preço exorbitante da passagem, a inspeção da polícia federal, o aperto da poltrona. Uma noite com Joana compensa qualquer sacrifício. Senhores passageiros com destino ao Rio de Janeiro, tendo em vista as condições meteorológicas, o aeroporto Santos Dumont encontra-se fechado e todos os voos dessa noite foram cancelados.

sábado, 4 de junho de 2011

Risonho é o destino.

Não é risonho o destino dos ditadores. Em vida podem ser idolatrados, mas também são odiados, muitas vezes traídos e até mesmo assassinados. Certo é que com a morte inevitável se esvai todo sonho de poder.

Os despojos, agora, são butim a servir aos propósitos dos sobreviventes. Ao virar múmia o líder desencarna e não assusta nem mais as criancinhas. Acaba numa vitrine, isso quando o corpo não apodrece e tem que ser enterrado às pressas. Ou ocultado, conforme a mudança dos ventos.

Sonhei com uma visita aos túmulos de antigos líderes comunistas. Seria um modo de rever com meu marido nossa história e, quem sabe, resgatar um pouco da paixão que nos movia, levando oferendas, como reis magos a festejar os que para nós representaram a esperança de salvação.

Seria Vladimir Ilitch capaz de rir alto na sala de aula ou mesmo de flertar num funeral? E se eu recebesse uma piscadela lasciva do antigo semideus? Sim, comecei com Lenin, o pai.

Ele queria ser enterrado, ironia, acabou embalsamado numa pirâmide na Praça Vermelha. Comecei a vê-lo não com o ar severo das efígies, mas degustando os objetos que lhe oferecia. Um par de estrelas vermelhas para o pescoço? Objetos de ouro, como um cordão? Com certeza não meu rosário de contas de vidro roxo e menos ainda a imagem de Nossa Senhora da Conceição.

Lenin gozou, por um tempo, da companhia de Stalin, dois pares de argolas, dois barris de carregar repartindo o mausoléu e as visitas. Fantasio o quarto do menino Joseph, uma cama da índia, qual manjedoura, um armário velho, duas bandejas de ferro. Adolescente, devia ler jornais nos parques públicos, conversar na biblioteca e cantar ao andar nas calçadas.

Stalin acabou caindo em desgraça e, sem dobre a finados, foi removido e enterrado em outra parte. Não o vejo rindo alto num ônibus ou beijando na boca num restaurante. Dai que escolhi como prenda para o bigodudo um jogo de botões antigos de quatro topázios e onze facas com cabo de prata. Preferiria ele uma bacia de fazer pão-de-ló?

Mao Tse Tung era a favor da cremação, mas acabou num mausoléu em Pequim. Dizem que o corpo está em péssimo estado. Agora estão insinuando que nem foi ele quem escreveu o livrinho vermelho. Mas as filas continuam na porta do monumento e os guias sugerem que os visitantes se abstenham de comentários, há secretas ouvindo tudo. Pronto, não vou mais oferecer-lhe a grande flor de crisólitas com pedras vermelhas.

Ho Chi Min queria ser cremado e foi parar numa caixa de vidro em Hanói. Vislumbro o líder vietnamita com um par de fivelas de sapatos e trinta escravos, que vivem brigando pois só dispõe de doze colheres e dez garfos.

Ho nunca chegou a ouvir música em fones de ouvido num restaurante, sem prestar atenção em ninguém. Sua trilha sonora era pautada pela pólvora. Avesso aos processos seletivos, nunca discutiu numa entrevista de emprego. Também não comprava nada no cinema, nem pipoca, já ressabiado com a sociedade de consumo.

As informações oficiais do governo dão conta de que é possível visitar o mausoléu de Kim II-Sung, em Pyongyang, às quintas e domingos. Já me avisaram que não é bem assim, só se entra com autorização especial. Na dúvida resolvi pular essa etapa, pois disseram também que na Coréia do Norte é muito mal visto comer no elevador e mesmo derramar lágrimas no consultório médico, ainda que a fome ou a dor apertem de verdade.

Dimitrov, o da Bulgária, nunca foi santo da minha devoção. Devia usar palavras de baixo calão no lugar de trabalho e até nos quartos das pessoas. Não merece sequer um urinol de cobre. Depois que caiu o muro demoliram seu mausoléu e o cremaram e enterraram de novo. Tirei o cemitério de Sofia do meu roteiro encantado.

Triste a situação de Klement Gottwald, o camarada checo que morreu pouco depois de Stalin. O corpo embalsamado foi se decompondo e acabou sendo cremado. Ficou só o mausoléu em Praga, mas há lugares mais interessantes a serem explorados. Prefiro o castelo que inspirou Kafka, esse sim eu colocaria num pano de batizar de veludo, dentro de um oratório pequeno de madeira branca, cercado por um par de castiçais lisos.

É, o mundo mudou. Nós também. Vou propor ao meu marido uma visita às obras dos grandes escritores. Um livro brilha como um par de pulseiras antigas, com sessenta e quatro diamantes rosas. Risonho é o destino de quem se livra das mortalhas e sai em busca desse resplendor.