domingo, 28 de agosto de 2011

Néo-concretos, o Fino da Bossa e o terreno da galhofa,

Ferreira Gullar e Augusto de Campos costumavam ser santos da minha maior devoção, até que deram de se engalfinhar por questões que não chegam a me comover. Não basta a grandeza da obra, a legenda de Augusto e Haroldo, a bela história do Poema Sujo?

Pouco me importa saber quem descobriu a América, até porque todo mundo sabe que os índios é que merecem maior crédito nessa história. Brasileiro adora luta livre, mas poucos se dão ao trabalho de ler as catilinárias com que poetas, em geral mais jovens, longe da maturidade estética e emocional, se estocam na ânsia de mostrar quem tem maior verso, melhor prosa e mais potente porretada linguística.

Ferreira Gullar narra hoje que “todas as pessoas informadas nesse terreno” (nas quais não me incluo, diga-se) “sabem que fui eu quem inventou o nome ‘neoconcreto’”. Daí tira inúmeras consequências capitais para as artes plásticas nacionais (Ilustrada de 28/08/2011).

Longe de brigar com o poeta, que continuo admirando, e muito, vou seguir seu exemplo. Deixo de lado, desde logo, a máxima tantas vezes repetida, de que “elogio em boca própria é vitupério” e passo, por uma vez, a me vangloriar de um batizado que, se não é tão importante, nem tão fértil, teve o dom de ser mais popular.

Mesmo as pessoas bem informadas nesse terreno ignoram solenemente que fui eu o criador da expressão “O Fino da Bossa”. No início de 1964, antes que os militares aparecessem, comecei com dois colegas da Faculdade de Direito a planejar um grande show de bossa nova em São Paulo, até então tida por Vinicius como o túmulo do samba.

Nas intermináveis discussões que sempre fazem parte das preliminares do espetáculo, a artista plástica que desenhou o cartaz achou o nome muito perigoso, pois podia facilmente resvalar para “O Fino da Bosta”. Venceu a maioria destemida e o show, realizado em maio no Teatro Paramount, entrou para a história da MPB, como narrado amplamente na literatura especializada, em versões sempre bastante distantes do que aconteceu de verdade.

Depois, já sem a minha amadora e distinta companhia, Horácio Berlinck levou o nome para um programa da TV Record, de enorme popularidade, com Elis Regina e Jair Rodrigues. Elis, ao contrário do que reza a lenda, não participou do show original, ao contrário de Vinicius, Baden, Chico, Sergio Mendes, o Tamba Trio, o Zimbo Trio e tantos outros. O grand finale ficou por conta de Alaíde Costa e o conjunto de Oscar Castro Neves. “Onde está você...”, alguém ainda se lembra?

No meu caso não haverá celeuma, espero. Uma boa pesquisa pode comprovar o que digo, pois na época tivemos o cuidado de registrar a marca no INPI, o que foi feito em meu nome. Como o show original fora feito em benefício da AACD, chegamos a procurar Paulinho Machado de Carvalho, na Record, reivindicando um royalty para a AACD. Nada feito.

O único lucro da empreitada foi termos rido muito, na sala de espera, onde Jô Soares e Juca Chaves também tomavam chá de cadeira e davam um verdadeiro show de humor. A emissora achou uma solução esperta, trocou o nome do programa para “O Fino...” e ficou por isso mesmo, nós e a AACD ficamos a ver navios. E muita gente ainda acha que “O Fino da Bossa” foi apenas o programa da Elis na TV Record.

Embora possa, se preciso, mostrar evidências desse batismo ilustre, garanto que a escolha de tão inspirado nome não teve qualquer influência posterior, positiva ou nefasta, nos rumos da música popular brasileira.

Apesar de ter carregado o violão de Chico Buarque, meu colega de Colégio Santa Cruz, que cantou de graça muitas vezes no programa “Primeira Audição”, que fazíamos antes com João Leão, na mesma TV Record, toda a criação e sucesso do nosso “Carioca” se deve exclusivamente ao seu extraordinário talento. João Gilberto vai fazer oitenta anos e também nada deve ao meu talento vocabular.

Longe de brigarmos com os cariocas, começou ali um intercâmbio duradouro entre músicos das duas praças. Luiz Eça reconhecia que Chico tinha talento, mas achava que Edu Lobo é quem iria mais longe. Os dois viraram parceiros e grandes amigos. Felizes os músicos, que resolvem suas diferenças no terreno da galhofa. Uma boa lição para os poetas de todas as gerações.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Minha noite com Joana.

Joana ficou de me buscar no Santos Dumont. Eu já tinha reservado uma mesa no Bife de Ouro, nada como uma entrada clássica no Rio de Janeiro, a pompa e a glória do Copacabana Palace. Senhores passageiros do voo JJ3095, dirijam-se ao portão de número 1, embarque imediato. Eu imaginava o dia de noiva de Joana, depilação, podóloga, manicure, maquiagem, creme no corpo todo. Nessa altura, ela já deve estar entrando naquele apertado vestido azul noite, com o decote sobre o qual aterrissa um provocante escaravelho de ouro com olhos de brilhantes. Nem ligo para o empurra-empurra do saguão, o preço exorbitante da passagem, a inspeção da polícia federal, o aperto da poltrona. Uma noite com Joana compensa qualquer sacrifício. Senhores passageiros com destino ao Rio de Janeiro, tendo em vista as condições meteorológicas, o aeroporto Santos Dumont encontra-se fechado e todos os voos dessa noite foram cancelados.

sábado, 4 de junho de 2011

Risonho é o destino.

Não é risonho o destino dos ditadores. Em vida podem ser idolatrados, mas também são odiados, muitas vezes traídos e até mesmo assassinados. Certo é que com a morte inevitável se esvai todo sonho de poder.

Os despojos, agora, são butim a servir aos propósitos dos sobreviventes. Ao virar múmia o líder desencarna e não assusta nem mais as criancinhas. Acaba numa vitrine, isso quando o corpo não apodrece e tem que ser enterrado às pressas. Ou ocultado, conforme a mudança dos ventos.

Sonhei com uma visita aos túmulos de antigos líderes comunistas. Seria um modo de rever com meu marido nossa história e, quem sabe, resgatar um pouco da paixão que nos movia, levando oferendas, como reis magos a festejar os que para nós representaram a esperança de salvação.

Seria Vladimir Ilitch capaz de rir alto na sala de aula ou mesmo de flertar num funeral? E se eu recebesse uma piscadela lasciva do antigo semideus? Sim, comecei com Lenin, o pai.

Ele queria ser enterrado, ironia, acabou embalsamado numa pirâmide na Praça Vermelha. Comecei a vê-lo não com o ar severo das efígies, mas degustando os objetos que lhe oferecia. Um par de estrelas vermelhas para o pescoço? Objetos de ouro, como um cordão? Com certeza não meu rosário de contas de vidro roxo e menos ainda a imagem de Nossa Senhora da Conceição.

Lenin gozou, por um tempo, da companhia de Stalin, dois pares de argolas, dois barris de carregar repartindo o mausoléu e as visitas. Fantasio o quarto do menino Joseph, uma cama da índia, qual manjedoura, um armário velho, duas bandejas de ferro. Adolescente, devia ler jornais nos parques públicos, conversar na biblioteca e cantar ao andar nas calçadas.

Stalin acabou caindo em desgraça e, sem dobre a finados, foi removido e enterrado em outra parte. Não o vejo rindo alto num ônibus ou beijando na boca num restaurante. Dai que escolhi como prenda para o bigodudo um jogo de botões antigos de quatro topázios e onze facas com cabo de prata. Preferiria ele uma bacia de fazer pão-de-ló?

Mao Tse Tung era a favor da cremação, mas acabou num mausoléu em Pequim. Dizem que o corpo está em péssimo estado. Agora estão insinuando que nem foi ele quem escreveu o livrinho vermelho. Mas as filas continuam na porta do monumento e os guias sugerem que os visitantes se abstenham de comentários, há secretas ouvindo tudo. Pronto, não vou mais oferecer-lhe a grande flor de crisólitas com pedras vermelhas.

Ho Chi Min queria ser cremado e foi parar numa caixa de vidro em Hanói. Vislumbro o líder vietnamita com um par de fivelas de sapatos e trinta escravos, que vivem brigando pois só dispõe de doze colheres e dez garfos.

Ho nunca chegou a ouvir música em fones de ouvido num restaurante, sem prestar atenção em ninguém. Sua trilha sonora era pautada pela pólvora. Avesso aos processos seletivos, nunca discutiu numa entrevista de emprego. Também não comprava nada no cinema, nem pipoca, já ressabiado com a sociedade de consumo.

As informações oficiais do governo dão conta de que é possível visitar o mausoléu de Kim II-Sung, em Pyongyang, às quintas e domingos. Já me avisaram que não é bem assim, só se entra com autorização especial. Na dúvida resolvi pular essa etapa, pois disseram também que na Coréia do Norte é muito mal visto comer no elevador e mesmo derramar lágrimas no consultório médico, ainda que a fome ou a dor apertem de verdade.

Dimitrov, o da Bulgária, nunca foi santo da minha devoção. Devia usar palavras de baixo calão no lugar de trabalho e até nos quartos das pessoas. Não merece sequer um urinol de cobre. Depois que caiu o muro demoliram seu mausoléu e o cremaram e enterraram de novo. Tirei o cemitério de Sofia do meu roteiro encantado.

Triste a situação de Klement Gottwald, o camarada checo que morreu pouco depois de Stalin. O corpo embalsamado foi se decompondo e acabou sendo cremado. Ficou só o mausoléu em Praga, mas há lugares mais interessantes a serem explorados. Prefiro o castelo que inspirou Kafka, esse sim eu colocaria num pano de batizar de veludo, dentro de um oratório pequeno de madeira branca, cercado por um par de castiçais lisos.

É, o mundo mudou. Nós também. Vou propor ao meu marido uma visita às obras dos grandes escritores. Um livro brilha como um par de pulseiras antigas, com sessenta e quatro diamantes rosas. Risonho é o destino de quem se livra das mortalhas e sai em busca desse resplendor.

domingo, 22 de maio de 2011

Je ne regrette rien.

Revolta e arrependimento. Eduardo Muylaert 22/05/2011

Non, rien de rien. Non, je ne regrette de rien. Ni le bien qu’on ma fait, ni le mal, tout ça m’est bien égal.[i] A voz familiar de Edith Piaf insistia em soar como leve ironia. Ali não havia som, pelo menos não havia música. As palavras iam e vinham em sua cabeça: não lamentar nada, nem as benesses recebidas, nem o mal, tudo nadamente igual. Mas não era fácil.

A sensação era de revolta, não de arrependimento. Como ele, um dos senhores do universo, fora parar naquela cela? Nunca se imaginara algemado, preso, acusado, exposto, nem nas piores fantasias. No máximo, uma acusação de crime financeiro, da qual se livraria com facilidade.

Seu desempenho na economia internacional não podia ter sido melhor, tanto que estava a ponto de disputar os mais altos cargos em seu país. Tinha imóveis requintados, carros invejáveis, ternos bem cortados e as mais belas mulheres.

Ele não sabia bem como seu conto de fadas havia se transformado em pesadelo. Mesmo abatido, não sentia qualquer remorso. Se fizesse ato de contrição, iam considera-lo culpado. Qual era mesmo seu pecado?

De repente Piaf se cala e entra em cena Rousseline, personagem de Victor Hugo: Amo o dinheiro? Não, eu me amo. Eu quero agradar; quero agradar as mulheres, por bem ou por mal; infelicidade se não agrado! Uma afronta me fere para sempre.[ii]

Non, rien de rien. Non, je ne regrette de rien. Ni le bien qu’on ma fait, ni le mal, tout ça m’est bien égal.[iii] A voz familiar de Edith Piaf insistia em soar como leve ironia. Ali não havia som, pelo menos não havia música. As palavras iam e vinham em sua cabeça: não lamentar nada, nem as benesses recebidas, nem o mal, tudo nadamente igual. Mas não era fácil.

A sensação era de revolta, não de arrependimento. Como ela, paupérrima, mãe solteira, estrangeira, fora se meter naquela situação? Nunca pensara em virar celebridade, notícia de jornal, ter que viver escondida.

Estava se dando bem no grande país, tinha emprego, moradia, podia educar a filha. Era até considerada uma boa empregada. Se considerava livre da fome e da desonra. Mesmo morando num bairro pobre, o necessário estava garantido.

Não tinha como se penitenciar, fizera tudo como fora orientada. Se demonstrasse pesar, iam achar que era falsa e, aí sim, estaria liquidada. O que tinha falhado?

Mais uma vez Piaf se eclipsa e surge a voz de Etiennette, criação do mesmo Hugo: Infelicidade! E já estamos além da penúria, estamos na pobreza e amanhã será preciso descer o terceiro degrau que entra na noite, a miséria.[iv]

Provavelmente nunca saberemos exatamente o que aconteceu. Claro, a Polícia investiga. Certo, a Justiça julga. Enquanto isso, torcidas continentais se digladiam como num fla-flu transnacional. Formam-se também times a favor dos pobres e a favor dos ricos, a audiência da televisão aumenta e os jornais se vendem aos borbotões.

Além das penitências processuais, vai haver um veredito. Por mais que isso cause indignação, o transtorno e a perturbação são definitivos. E quem conhece os mecanismos da lei sabe que justiça e verdade nem sempre andam juntas, há muitas ocasiões em que o fosso é intransponível.

Enquanto isto, verdadeiro ou falso, aguardamos ansiosamente o próximo capítulo. Ao som de Piaf, se não lhe causar pena.



[i] Je ne regrette rien, Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956, gravada por Edith Piaf em 1960.

[ii] Mille Francs de Récompense, Ato III, Cena I, in Le Théâtre en Liberté, Folio Classique, Gallimard, Paris, 2002, pág. 214, tradução livre.

[iii] Je ne regrette rien, Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956, gravada por Edith Piaf em 1960.

[iv] Mille Francs de Récompense, Ato I, Cena II, in Le Théâtre en Liberté, Folio Classique, Gallimard, Paris, 2002, pág. 96, tradução livre.

domingo, 1 de maio de 2011

O preço a pagar, ou, Lolita, o retorno.

O preço a pagar não pode ser pequeno para quem mistura vida e literatura, como se uma ou outra já não bastassem. Ela resolveu me procurar quando viu a notícia no New York Times de 25 de janeiro de 2011.[1] O jornal dizia que, contra todas as opiniões da época, ele estava certo. Sempre correra atrás de borboletas, só gostava de ser fotografado caçando lepidópteros, nunca em sua mesa de escritor. Ele as classificava pelo formato do sexo e se vangloriava em sua poesia: Eu a encontrei e a nomeei, versado que sou no latim taxonômico; assim me tornei padrinho de um inseto e o primeiro a descrevê-lo – e outra fama não quero.[2] Agora os entomologistas, que antes o consideravam um amador aplicado, descobriram a partir de sequenciamentos de DNA que realmente as borboletas do novo mundo vêm todas de um ancestral comum que viveu há milhões de anos e chegaram da Ásia em cinco levas principais. Como ele podia saber disso nos anos 50?

Ela se apresentou como Senhora Richard Schiller, mas desconfiei que não era seu nome verdadeiro. Os olhos ela escondia atrás de enormes óculos escuros que conservavam certo charme, ainda que de outra época. Tinha incontáveis perguntas e falava rápido. Não sei ao certo se o relato era confuso ou se fui vítima de tormentoso fenômeno cognitivo. Algumas pessoas exalam uma rara espécie de magnetismo, por mais que façamos força para ouvi-las vamos entrando num torpor que obnubila o entendimento. As palavras fluem como canção distante e vamos perdendo pé na realidade. A solução evidente é pegar um papel e começar a tomar notas, por mais que isso pareça antipático. Às vezes, como nesse caso, nem assim a conexão com o verbal se estabelece. Naufragado no fluxo de palavras, me peguei observando pés quase infantis com unhas impecavelmente pintadas de vermelho, expostos em delicadas sandálias que pareciam feitas mais para revelar do que para proteger.

A vontade era de abraçá-la, pegar nela. Eu sabia que não devia me envolver, entrar nesse jogo. Ocorre que há uma semana não consigo pensar em outra coisa. Nunca achei que podia voltar a abrir mão das regras, esquecer as diferenças, principalmente de idade, enfrentar a censura da nossa hipócrita sociedade.

Não sabia como nem porquê, mas estava do lado dela. Minhas respostas perderam toda objetividade, eu responderia tudo que ela quisesse ouvir. O que é mais importante, o texto ou a personagem? Não existe uma coisa sem a outra, tentei conciliar. Ela não se deixava levar. O autor me batizou, mas hoje sou mais famosa do que do ele e suas borboletas. Mesmo frágil e delicada, não sou um inseto. Meu nome virou adjetivo, agora estou em toda parte. Quem se lembra de seus outros livros? Quem se recorda de suas outras criaturas?

Houve uma grande pesquisa em 1999, seis mil pessoas foram ouvidas e os resultados publicados no jornal Le Monde, você já ouviu falar?[3] Estou na vigésima-sétima posição, só mais dois nomes próprios surgem na lista assim, sem qualquer adjetivo. Mas o Ulysses, de Joyce, vem depois de mim, é o 28. E Nadja, de André Breton, figura em 50, foi até onde cheguei.

Ela me convidou a assistir o filme O Colecionador, dirigido por William Wyler em 1965, a partir de um livro de John Fowles, de 1963. É a história de um rapaz tímido que coleciona borboletas e sequestra uma estudante. Parece uma história de amor um pouco fora do normal, mas quando a moça morre ele logo parte em busca de outra vítima.

Tive dificuldade em seguir a trama, minha respiração sincronizou com a dela e um arrepio me percorria ao simples roçar do seu braço. Jamais cacei borboletas, tenho horror de entomólogos, sequestradores e pedófilos de modo geral. O que eu tinha a ver com isso?

Filha ou namorada? História de amor ou perversão? Porque a morte sempre presente? Quando a história começa meu pai já tinha morrido. Minha mãe morre atropelada de desgosto. Meu padrasto, o bonito e pleonástico Professor Humbert Humbert, mata seu duplo, o Sr. Quilty, e depois morre na prisão. Se o livro é um pouco autobiográfico - por mais que ele negue, não pode deixar de ser – porque o russo só viria a morrer em 1977? Seus relatos anteriores já eram recheados de pedofilia e morte. Como ele escapou por tanto tempo?

Ele quis se livrar de mim. Sem coragem de me matar no corpo do livro, o covarde sela meu destino no prefácio supostamente escrito por um John Ray, Jr., ph.D. Não podendo me perdoar por ter fugido e casado com Dick, informa que morri “no parto, dando à luz uma menina natimorta, no dia de Natal de 1952, em Gray Star, localidade do extremo noroeste dos EUA”.[4]

E daí? Hoje todos sabem quem sou. Sabe porque? Os escritores morrem, às vezes são completamente esquecidos. A personagem não morre nunca. Por muito tempo vão falar de mim, vão tentar saber se fui vítima inocente ou diabinho perverso. Com essa conclusão definitiva, a meu ver precipitada, suas dúvidas se dissiparam e ela desapareceu.

Nunca mais fui o mesmo. Voltei a assistir o filme. Estou agarrado ao livro, nessa nova tradução. Vou lê-lo também no original, tentando superar as dificuldades com o inglês. Comprei a edição da Folio, francesa, que vem numa linda caixinha de pelúcia rosa.

Não me falem mais em Dolores Haze. Estou tentando apagar da memória a primeira frase do livro, que se transformou na minha oração preferida: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado”. [5] Amém.



[1] http://www.nytimes.com/2011/02/01/science/01butterfly.html

[2] Vladimir Nabokov, On discovering a butterfly, 1943, tradução livre.

[3] http://fr.wikipedia.org/wiki/Les_100_livres_du_siècle

[4] Vladimir Nabokov, Lolita, Alfaguara, 2011, tradução Sergio Flaksman, pág. 8 .

[5] Idem, pág. 13

domingo, 24 de abril de 2011

A foto que eu queria ter feito, no OLHAVÊ

19-04-2011
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A foto que eu queria ter feito
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A foto que eu queria ter feito, Eduardo Muylaert


http://www.olhave.com.br/blog/wp-content/uploads/2011/01/richard-misrach.jpg



Foto: Richard Misrach – Albuquerque, New Mexico, 1983

Por Eduardo Muylaert.

Já fui Atget, já fui Brassaï, já fui Lee Friedlander, na minha pretensiosa fantasia, claro. Esses modelos – já clássicos – da fotografia em branco e preto nunca sairão do meu DNA. Tantas fotos de qualquer dos três que eu queria ter feito…

Mas a foto que eu queria mesmo ter feito, de verdade, é esse trabalho de Richard Misrach, detalhe de uma pintura a óleo da coleção do Museu de Arte da Universidade do Novo México, em Albuquerque.

Misrach nasceu em Los Angeles, Califórnia, em 1949. Foi um dos pioneiros, nos anos 70, da revalorização da cor na fotografia e do uso de ampliações de tamanho comparável às grandes pinturas dos museus.

Seus trabalhos mais conhecidos são sobre a intervenção humana na paisagem. Os Desert Cantos, de exuberante beleza, retratam áreas desertas atingidas por experiências nucleares e outras formas de devastação, com forte conteúdo de denúncia. Já o mais divulgado, On the Beach, traça uma perspectiva aérea do frágil ser humano interagindo com a imensidão do mar

A foto que eu queria ter feito faz parte do livro Pictures of Paintings, de 2003, completamente esgotado, como quase todos os livros de Misrach. É um detalhe da pintura a óleo Alegoria do Amor Virtuoso, de Antiveduto Grammatica, pintor do proto-barroco italiano que viveu de 1571 a 1610. Misrach a fotografou com luz natural, numa câmera 8×10, sem se importar com os reflexos que passam a integrar a foto.

Como observa Craig Owens, “alegoria não é hermenêutica. Ao contrário, ela adiciona outro significado à imagem”. As fotografias de detalhes de obras de arte de Misrach formulam um léxico de valores culturais como raça, gênero, religião e poder.

Rompendo as barreiras entre a prática tradicional da documentação e as recentes estratégias de arte de apropriação, esse trabalho de Richard Misrach levanta importantes questões relativas à própria representação.

Agora em fevereiro, foi lançado mais um livro sobre o tema, Shared Intelligence: American painting and the Photograph, em que Barbara Buhler Lynes e Jonathan Weinberg voltam ao palpitante assunto da relação entre pintura e fotografia na arte norte-americana, objeto de exposição de mesmo nome.

Tudo muito moderno. Alguns ainda relutam em aceitar. Mas não custa lembrar que entre os importantes trabalhos de Fox Talbot já encontramos uma bela interação com a pintura, An Oil Painting. Esse trabalho representava uma novidade, em 1839 ou 1840.


Eduardo MuylaertPictures of PaintingsRichard Misrach

sábado, 23 de abril de 2011

Do bom uso do clichê

DO BOM USO DO CLICHÊ.     Eduardo Muylaert.      Sent from my Amparo, 22/04/2011

 

‘Vamos nos casar e seremos muito felizes’ [1], disse o adjetivo ao substantivo. Dessa insólita união surgiram muitas dores de cabeça e um sem número de clichês.  O infausto privilégio não é nosso, já fez vítimas ilustres em civilizações mais antigas. Quem nunca ouviu falar do Senhor de La Palice, uma espécie de versão francesa do nosso Conselheiro Acácio? Certo, o Conselheiro nada tem de nosso, é personagem de Eça de Queiroz, no Primo Basílio, representa a pompa balofa, as frases solenes e vazias, o discurso oficial do fim do século 19. Alguma coisa mudou? O chavão continua a parecer indispensável na fala dos políticos, mas também na narração esportiva, na religião e no comércio. A monarquia não tem nenhum recato, sua mensagem de Natal evoca sempre o espírito de paz, a perspectiva de progresso, a simpatia pelos necessitados e um carinho especial pelos doentes e solitários. A República não destoa, prefere as fórmulas solenes e ocas a qualquer compromisso concreto. Todos sabemos que  é preciso ‘proporcionar melhores condições de saúde e de vida às camadas mais pobres da população’ [2]. Porque não um discurso renovado, que deixe um pouco de lado as fórmulas gastas? Mais do que apreciar o gol, o telespectador anseia pelo grito prolongado do locutor. A jogada de um craque não é nada sem as acacianas hipérboles que a consagram no coração do torcedor. O eleitor poderia estranhar uma proposta que não viesse na moldura surrada do vossexcelentês. Não há religião, nem propaganda, sem bordão. A ligação já foi feita por Joyce, no seu Ulysses: ‘A missa parece ter terminado. Posso ouvi-los todos nisso. Orai por nós. E orai por nós. E orai por nós. Boa ideia a repetição. Mesmo coisa com os anúncios. Comprai de nós. E comprai de nós.’ [3]  Também na voz da personagem central: ‘Porque, você vê, diz Bloom, para uma propaganda você precisa ter repetição. Esse é todo o segredo.’ [4] Nelson Rodrigues falava na ‘brusca vergonha da trivialidade’[5], vergonha essa que anda meio em falta. Mas há injustiças. O pobre Senhor de La Palice, nascido Jacques de  Chabannes, foi um valoroso comandante francês que morreu lutando em Pavia no século XVI. Para comemorar seus feitos, os soldados compuseram uma canção cheia de obviedades que terminava com esses versos: ‘Quinze minutos antes de morrer, ele ainda estava vivo’[6] Foi assim que o famoso Marechal da França entrou para a história como ingênuo e o substantivo palissade acabou no dicionário três séculos depois. Não basta evitar o lugar comum, portanto, é preciso fugir dele como o diabo da cruz. A dieta nem sempre é fácil, apesar de sabermos que ‘a gordura é que engorda, não o açúcar.[7] ‘A diferença entre o clichê e o lugar comum é impossível de determinar objetivamente’, atesta Carlos Ceia.[8]  A tautologia, dizer o mesmo de formas diferentes, e o pleonasmo, redundância de termos, também disputam território com o clichê. Para se defender da tentação existem alguns dicionários, raros em português, como o recente O Pai dos Burros de Humberto Werneck (2009), herdeiro do Dicionário das Idéias Feitas de Gustave Flaubert (1852) e  de Lugares-comuns, de Fernando Sabino (1974). Também, o nosso é o único idioma em que o vocábulo trocou o acento agudo pelo circunflexo. O Dictionary of Clichés de Eric Partridge (1940) existe em edição kindle, que pode ser baixada na internet. Um experimentado profissional da escrita reconhece que os clichês ainda pululam no seu texto, tão sub-repticiamente que às vezes escapam. Já um cliente da Amazon[9] relata que comprou esse dicionário há alguns anos para brincar com a mãe, que usava fórmulas prontas o tempo todo, mas gostou tanto que acabou ficando com o presente. Quem não gostar do Partridge pode recorrer ao Rogers (1986), mais econômico, em livro de bolso. Já os que falam a língua de Molière podem se servir do Dictionnaire des Clichés Littéraires de Hervé Laroche (2004). Adianta? Do alto dessas estantes milhões de estereótipos nos contemplam. Seu uso pode fazer de você um escritor de sucesso. Um político bem votado. Um amante apaixonado. Um locutor esportivo aclamado ou odiado. Um arcebispo consagrado. Uma sensação nas festas de família. Um orador aplaudido nas mais requintadas cerimônias. Você não precisa vender sua alma, basta alugar seu espírito. Afinal, até o grande O’Henry não escapou do lugar comum ao escrever sobre clichês em 1910: ‘Foi fantástico. E o mais fantástico de tudo são as palavras, e como elas fazem amizade umas com as outras, se associando com frequência até que nem mesmo um obituário as separe’.[10]  Clichê, descansa em paz.

 



 

 

 


[1] Novela Morde e Assopra, TV Globo, 20/04/2011, 20h20

[2] Uma ação necessária, editorial, O Estado de São Paulo, 20/04/2011, pág. A3

[3] Mass seems to be over. Could hear them all at it. Pray for us. And pray for us. And pray for us. Good idea the repetition. Same thing with ads. Buy from us. And buy from us.

[4] Because, you see, says Bloom, for an advertisement you must have repetition. That's the whole secret.

[5] O Óbvio Ululante.

[6] Un quart d’heure avant sa mort/il était encore en vie.

[7] Conversa em mesa de jantar, 20/04/2011, cerca de 21h.

[8] Carlos Ceia, Lugar-Comum, www.edtl.com.pt

[9] www.amazon.com

[10] O’Henry, Whirligigs, de 1910 . It was wonderful. And most wonderful of all are words, and how they make friends one with another, being oft associated, until not even obituary notices do them apart.