domingo, 1 de maio de 2011

O preço a pagar, ou, Lolita, o retorno.

O preço a pagar não pode ser pequeno para quem mistura vida e literatura, como se uma ou outra já não bastassem. Ela resolveu me procurar quando viu a notícia no New York Times de 25 de janeiro de 2011.[1] O jornal dizia que, contra todas as opiniões da época, ele estava certo. Sempre correra atrás de borboletas, só gostava de ser fotografado caçando lepidópteros, nunca em sua mesa de escritor. Ele as classificava pelo formato do sexo e se vangloriava em sua poesia: Eu a encontrei e a nomeei, versado que sou no latim taxonômico; assim me tornei padrinho de um inseto e o primeiro a descrevê-lo – e outra fama não quero.[2] Agora os entomologistas, que antes o consideravam um amador aplicado, descobriram a partir de sequenciamentos de DNA que realmente as borboletas do novo mundo vêm todas de um ancestral comum que viveu há milhões de anos e chegaram da Ásia em cinco levas principais. Como ele podia saber disso nos anos 50?

Ela se apresentou como Senhora Richard Schiller, mas desconfiei que não era seu nome verdadeiro. Os olhos ela escondia atrás de enormes óculos escuros que conservavam certo charme, ainda que de outra época. Tinha incontáveis perguntas e falava rápido. Não sei ao certo se o relato era confuso ou se fui vítima de tormentoso fenômeno cognitivo. Algumas pessoas exalam uma rara espécie de magnetismo, por mais que façamos força para ouvi-las vamos entrando num torpor que obnubila o entendimento. As palavras fluem como canção distante e vamos perdendo pé na realidade. A solução evidente é pegar um papel e começar a tomar notas, por mais que isso pareça antipático. Às vezes, como nesse caso, nem assim a conexão com o verbal se estabelece. Naufragado no fluxo de palavras, me peguei observando pés quase infantis com unhas impecavelmente pintadas de vermelho, expostos em delicadas sandálias que pareciam feitas mais para revelar do que para proteger.

A vontade era de abraçá-la, pegar nela. Eu sabia que não devia me envolver, entrar nesse jogo. Ocorre que há uma semana não consigo pensar em outra coisa. Nunca achei que podia voltar a abrir mão das regras, esquecer as diferenças, principalmente de idade, enfrentar a censura da nossa hipócrita sociedade.

Não sabia como nem porquê, mas estava do lado dela. Minhas respostas perderam toda objetividade, eu responderia tudo que ela quisesse ouvir. O que é mais importante, o texto ou a personagem? Não existe uma coisa sem a outra, tentei conciliar. Ela não se deixava levar. O autor me batizou, mas hoje sou mais famosa do que do ele e suas borboletas. Mesmo frágil e delicada, não sou um inseto. Meu nome virou adjetivo, agora estou em toda parte. Quem se lembra de seus outros livros? Quem se recorda de suas outras criaturas?

Houve uma grande pesquisa em 1999, seis mil pessoas foram ouvidas e os resultados publicados no jornal Le Monde, você já ouviu falar?[3] Estou na vigésima-sétima posição, só mais dois nomes próprios surgem na lista assim, sem qualquer adjetivo. Mas o Ulysses, de Joyce, vem depois de mim, é o 28. E Nadja, de André Breton, figura em 50, foi até onde cheguei.

Ela me convidou a assistir o filme O Colecionador, dirigido por William Wyler em 1965, a partir de um livro de John Fowles, de 1963. É a história de um rapaz tímido que coleciona borboletas e sequestra uma estudante. Parece uma história de amor um pouco fora do normal, mas quando a moça morre ele logo parte em busca de outra vítima.

Tive dificuldade em seguir a trama, minha respiração sincronizou com a dela e um arrepio me percorria ao simples roçar do seu braço. Jamais cacei borboletas, tenho horror de entomólogos, sequestradores e pedófilos de modo geral. O que eu tinha a ver com isso?

Filha ou namorada? História de amor ou perversão? Porque a morte sempre presente? Quando a história começa meu pai já tinha morrido. Minha mãe morre atropelada de desgosto. Meu padrasto, o bonito e pleonástico Professor Humbert Humbert, mata seu duplo, o Sr. Quilty, e depois morre na prisão. Se o livro é um pouco autobiográfico - por mais que ele negue, não pode deixar de ser – porque o russo só viria a morrer em 1977? Seus relatos anteriores já eram recheados de pedofilia e morte. Como ele escapou por tanto tempo?

Ele quis se livrar de mim. Sem coragem de me matar no corpo do livro, o covarde sela meu destino no prefácio supostamente escrito por um John Ray, Jr., ph.D. Não podendo me perdoar por ter fugido e casado com Dick, informa que morri “no parto, dando à luz uma menina natimorta, no dia de Natal de 1952, em Gray Star, localidade do extremo noroeste dos EUA”.[4]

E daí? Hoje todos sabem quem sou. Sabe porque? Os escritores morrem, às vezes são completamente esquecidos. A personagem não morre nunca. Por muito tempo vão falar de mim, vão tentar saber se fui vítima inocente ou diabinho perverso. Com essa conclusão definitiva, a meu ver precipitada, suas dúvidas se dissiparam e ela desapareceu.

Nunca mais fui o mesmo. Voltei a assistir o filme. Estou agarrado ao livro, nessa nova tradução. Vou lê-lo também no original, tentando superar as dificuldades com o inglês. Comprei a edição da Folio, francesa, que vem numa linda caixinha de pelúcia rosa.

Não me falem mais em Dolores Haze. Estou tentando apagar da memória a primeira frase do livro, que se transformou na minha oração preferida: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado”. [5] Amém.



[1] http://www.nytimes.com/2011/02/01/science/01butterfly.html

[2] Vladimir Nabokov, On discovering a butterfly, 1943, tradução livre.

[3] http://fr.wikipedia.org/wiki/Les_100_livres_du_siècle

[4] Vladimir Nabokov, Lolita, Alfaguara, 2011, tradução Sergio Flaksman, pág. 8 .

[5] Idem, pág. 13

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro Edouard Edouard!! Muito bom!!
abs
juan

Sergio Flaksman disse...

Nada à toa, dores e névoa foram convocadas na tessitura dessa cortina que cerca de silêncios e eufemismos a monstruosidade que nunca chega a ocorrer diante dos olhos de quem lê mas, o tempo todo e quase no limite do exprimível, insiste em tentar explicar-se.
Bons leitores com voz são pérolas que raramente nos chegam no meio das cascas.
Obrigado.