E o autor se fez pessoa.
Do fundo da sala, reconheci a voz límpida de Gabriela pedindo para o autor ler mais um poema. Ela queria em sua mente gravar esse registro. Sensação curiosa, ler um texto e vislumbrar a voz do dono. Visualizar talvez não seja verbo adequado, “ouvidualizar” também soa estranho. Cada um de nós tem um modo personalíssimo de escandir as silabas e modular as frases, com ou sem chiado. Essa toada é registrada pelo cérebro, que acaba por atrelar o som ao escrito. Quantas vezes, ao ler uma apostila ou livro, não fomos perseguidos pela voz do professor que o escrevera, contaminando nosso ato solitário de leitura?
Paulo Henriques Britto é um carioca que não demonstra os 57 anos que carrega, talvez por viver parte da existência numa esfera distante em que o tempo não corre e onde não existem problemas, só questões a serem propostas e desafiadas. Depois de falar de si e de sua obra com simpatia e desenvoltura, Britto pretendeu-se pouco dotado para ler os próprios textos. Vencida a resistência inicial, começou como que timidamente com o primeiro poema de “Tarde”, sem dúvida uma espécie de confissão:
“No poema moderno, é sempre nítida
uma tensão entre a necessidade
de exprimir-se uma subjetividade
numa personalíssima voz lírica
e, de outro lado, a consciência critica
de um sujeito que se inventa e evade,
ao mesmo tempo ressaltando o que há de
falso em si próprio – uma postura cínica,
A platéia já estava conquistada, o pedido de bis foi atendido. Por fim, uma calorosa salva de palmas, como se dizia nos programas de auditório, coroou a leitura de “Paraísos Artificiais”, primeira crônica do livro de mesmo nome. As crônicas são antigas, vêm dos anos 70 e foram sendo buriladas ao longo dos anos.
Paulo Henriques Britto deixou o Colégio Militar do Rio de Janeiro em 1968, auge do período repressivo. Foi parar na Califórnia, onde adquiriu uma segunda língua e se encantou com vanguardas e contestações, sem perder o agudo senso critico.
Começou estudando matemática, tentou cinema e acabou se consagrando como mestre das palavras, tradutor, poeta, contista e professor.
A PUC da Gávea, no Rio, infelizmente para nós, consome cada vez mais seu tempo. Quem sabe de seu apostolado surjam novos talentos. Certo é que, para algumas traduções, só Britto está preparado, não só por seu enraizado conhecimento de inglês, mas pela paciência e persistência que o leva a passar anos trancado numa biblioteca para descobrir linguagens arcaicas que pudessem fazer justiça a um texto original.
Tem entre seus interlocutores habituais, por correio eletrônico, figuras como John Updike e até mesmo o quase intangível Thomas Pynchon, que não se deixa fotografar e ninguém sabe onde encontrar.
Alguém perguntou a P.H. se não é desanimador traduzir para pessoas que sabem menos do que ele. Provavelmente a grande maioria dos leitores anglófonos também entendem muito menos do que nosso tradutor. Diz a lenda bahiana que Ruy Barbosa foi para a Inglaterra ensinar inglês. Pode não ser verdade, mas Paulo Henriques Britto está preparado para esse feito.
Como pode um intelectual tão sofisticado, consagrado e premiado, ser ao mesmo tempo uma pessoa tão simples e acessível? Existem dois tipos de criadores, diz ele. Mozart nasceu feito e compunha admiravelmente aos dez anos de idade. Beethoven lutou muito no começo, mas à custa de esforço criou obras magníficas. Paulo Henriques se coloca nessa segunda posição, a dos que trilharam todo o caminho do aprendizado clássico, do respeito às regras de composição, dos padrões da matemática, para só então se dar ao luxo de romper alguns preceitos. Tornou-se, assim, um grande virtuoso, em qualquer das suas atividades.
Britto ama Proust e Machado, traduz Byron e adora Drummond, mas não é incondicional de Olavo Bilac. Ironia do destino, compartilha com esse outro carioca, patrono do serviço militar, o nome de seu último livro de poesias. Tarde é obra recente, fruto do convívio com temas maduros e sofridos, como a morte e a doença dos mais velhos.
Figura surpreendente, esse Paulo Henriques Britto. Ao vivo, não se parece em nada com a foto da orelha do livro. Quem o vir na rua, imaginaria uma espécie de técnico de computação, um pouco alheio ao movimento da rua.
Na verdade, Paulo Henriques Britto está sempre computando, a um só tempo completamente desapegado e totalmente conectado ao movimento do universo.
Nessa noite fria de quarta-feira o grande autor, convidado do Marcelino, para nós ganhou voz e virou pessoa.
(Eduardo Muylaert, maio de 2008, 4500 caracteres com espaços)
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