domingo, 22 de maio de 2011

Je ne regrette rien.

Revolta e arrependimento. Eduardo Muylaert 22/05/2011

Non, rien de rien. Non, je ne regrette de rien. Ni le bien qu’on ma fait, ni le mal, tout ça m’est bien égal.[i] A voz familiar de Edith Piaf insistia em soar como leve ironia. Ali não havia som, pelo menos não havia música. As palavras iam e vinham em sua cabeça: não lamentar nada, nem as benesses recebidas, nem o mal, tudo nadamente igual. Mas não era fácil.

A sensação era de revolta, não de arrependimento. Como ele, um dos senhores do universo, fora parar naquela cela? Nunca se imaginara algemado, preso, acusado, exposto, nem nas piores fantasias. No máximo, uma acusação de crime financeiro, da qual se livraria com facilidade.

Seu desempenho na economia internacional não podia ter sido melhor, tanto que estava a ponto de disputar os mais altos cargos em seu país. Tinha imóveis requintados, carros invejáveis, ternos bem cortados e as mais belas mulheres.

Ele não sabia bem como seu conto de fadas havia se transformado em pesadelo. Mesmo abatido, não sentia qualquer remorso. Se fizesse ato de contrição, iam considera-lo culpado. Qual era mesmo seu pecado?

De repente Piaf se cala e entra em cena Rousseline, personagem de Victor Hugo: Amo o dinheiro? Não, eu me amo. Eu quero agradar; quero agradar as mulheres, por bem ou por mal; infelicidade se não agrado! Uma afronta me fere para sempre.[ii]

Non, rien de rien. Non, je ne regrette de rien. Ni le bien qu’on ma fait, ni le mal, tout ça m’est bien égal.[iii] A voz familiar de Edith Piaf insistia em soar como leve ironia. Ali não havia som, pelo menos não havia música. As palavras iam e vinham em sua cabeça: não lamentar nada, nem as benesses recebidas, nem o mal, tudo nadamente igual. Mas não era fácil.

A sensação era de revolta, não de arrependimento. Como ela, paupérrima, mãe solteira, estrangeira, fora se meter naquela situação? Nunca pensara em virar celebridade, notícia de jornal, ter que viver escondida.

Estava se dando bem no grande país, tinha emprego, moradia, podia educar a filha. Era até considerada uma boa empregada. Se considerava livre da fome e da desonra. Mesmo morando num bairro pobre, o necessário estava garantido.

Não tinha como se penitenciar, fizera tudo como fora orientada. Se demonstrasse pesar, iam achar que era falsa e, aí sim, estaria liquidada. O que tinha falhado?

Mais uma vez Piaf se eclipsa e surge a voz de Etiennette, criação do mesmo Hugo: Infelicidade! E já estamos além da penúria, estamos na pobreza e amanhã será preciso descer o terceiro degrau que entra na noite, a miséria.[iv]

Provavelmente nunca saberemos exatamente o que aconteceu. Claro, a Polícia investiga. Certo, a Justiça julga. Enquanto isso, torcidas continentais se digladiam como num fla-flu transnacional. Formam-se também times a favor dos pobres e a favor dos ricos, a audiência da televisão aumenta e os jornais se vendem aos borbotões.

Além das penitências processuais, vai haver um veredito. Por mais que isso cause indignação, o transtorno e a perturbação são definitivos. E quem conhece os mecanismos da lei sabe que justiça e verdade nem sempre andam juntas, há muitas ocasiões em que o fosso é intransponível.

Enquanto isto, verdadeiro ou falso, aguardamos ansiosamente o próximo capítulo. Ao som de Piaf, se não lhe causar pena.



[i] Je ne regrette rien, Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956, gravada por Edith Piaf em 1960.

[ii] Mille Francs de Récompense, Ato III, Cena I, in Le Théâtre en Liberté, Folio Classique, Gallimard, Paris, 2002, pág. 214, tradução livre.

[iii] Je ne regrette rien, Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956, gravada por Edith Piaf em 1960.

[iv] Mille Francs de Récompense, Ato I, Cena II, in Le Théâtre en Liberté, Folio Classique, Gallimard, Paris, 2002, pág. 96, tradução livre.

2 comentários:

Analu disse...

texto lindo. sonoro, doído. bj, analu

Analu disse...

texto lindo. musical, doído. bj